Está na certidão de nascimento: na próxima segunda-feira, o ilustre ilustrador Jô Oliveira completará 80 anos. Pernambucano, desde 1975 em Brasília, será o segundo aniversário do ano, uma vez que, para além do registrado (oficialmente, num erro atestado pelo pai), ele nasceu mesmo no dia 4 de março. Mas, pouco importa: 2024 é ano de vários frutos para os 50 anos de carreira do artista, sempre atento ao peso visual derivado de manifestações como o carimbó, o reisado e outros festejos, além de focado no apego do do brasileiro à religiosidade
Um talento latente, escreventes e papeis; nisso se formata a arte de Jô. “Não tenho nada contra a tecnologia: só não uso computador para fazer meu trabalho porque não tenho habilidade ou paciência. Uso mesmo é para escanear e, em cima da minha prancheta, tem um tablet — ele me serve para a realização das mais completas pesquisa”, observa.
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Com obras circulando em países diversos, entre os quais Grécia, México, Dinamarca, Jô Oliveira teve sólida formação carioca, antes de estudar na Escola Superior de Artes Industriais (na Hungria) — uma experiência definitiva. Nos 50 anos de atividade, criou clássicos como a gravura A chegada de Lampião no inferno, circulou em salões de humor, venceu prêmios nacionais (Olho de Boi) e ainda internacionais como o Asiago da Arte Filatélica (promovido pela Itália). Desafios não faltam para o ano de celebração: tem alimentado o levantamento do cineasta Ítalo Cajueiro para elaboração de obra documental e, por meio de seleção do Programa de Ocupação dos Espaços Culturais da Caixa, terá uma exposição montada no Rio de Janeiro. Outra, de iniciativa holandesa, será apresentada em caráter virtual.
De onde vêm as tuas inspirações e como brotou a vontade ser artista?
Sou nordestino, nascido em Itamaracá (PE). Desde criança, sempre fiquei envolvido com desenho, desde os seis anos, e não parei. Morando 15 anos no Nordeste, assimilei muito da cultura. Morei em Campina Grande (Pb), que é muito especial, em termos de manifestações populares. O São João é muito animado, o carnaval, as festas como a do bumba-meu-boi e a Padroeira. Quando segui para a Escola de Belas Artes (RJ), depois de passar por Pernambuco e Mato Grosso, deparei com o que foi um grande drama: com que diabo eu vou me ocupar?! Queria ter uma característica especial no meu trabalho. Então, optei por transcrever tudo o que tinha aprendido, quando criança, e passar a me expressar por meio desta visão popular. Levei de vários lugares a prática desde a infância. Comecei a estudar o cordel, e o cordel é muito importante, por ser narrativo. E eu sou ilustrador, dependo muito da narrativa, de um cartaz, de um título, de um do texto do livro, de um tema para uma história em quadrinho. Faço trabalhos com narrativa pessoal. Não sou um artista plástico, sou um ilustrador.
Como evolui a profissão?
Depois de três anos no Rio, passei seis anos na Hungria — foi onde me aprofundei nas gravuras. Levei debaixo do braço o Dicionário do Folclore, do Câmara Cascudo, e ainda uma antologia de cordel da casa Rui Barbosa. Me ajudaram muito no fim do curso no exterior, para a diplomação, exigiram trabalho visual, e o meu tema foi o folclore do Nordeste. Antes de eu concluir meu curso, tive a oportunidade de participar de um festival da história em quadrinhos italiano. Tinha ido para o exterior, por meio dos desenhos animados. Num festival de desenho animado carioca, de cinema amador, levei A Pantera Negra, que é de 1968. Obra que pouco tem a ver com o trabalho que desenvolvo hoje. Peguei uma música da década de 1920, bem estridente, e mesclei com o movimento negro americano, naquele ano, mataram o Martin Luther King. O movimento negro periférico de rua foi bem fotografado, tinha imagem que circulava na revista O Cruzeiro. Criei um desenho animado abstrato, seguindo a música.
O Brasil de Jô é atual: fala de indígenas, de negritude…
A minha linha de trabalho é em cima da vertente popular, e que implica em resistência, com autenticidade e raiz. Independe de participação partidária. O fato de ter estado em país que seguia a cortina de ferro interferiu nas minhas tendências socialistas. Realmente, não sou de nenhum partido. O meu partido é o da afirmação da cultura brasileira, no que tem de tradicional, de importante e o que faz com que sejamos mais brasileiros: isso me importa. Fiz, por exemplo, uma versão de livro de cangaceiros — meu cangaceiro não é simplesmente uma pessoa inserida numa luta; mas o que resultou disso: a participação, a resistência dos cangaceiros desembocou em apelo popular muito forte. São recordações de fatos míticos que nem são realidade, mas geraram uma visão especial, refeita pelo povo, sem nenhuma pesquisa histórica. Era apenas o escutar: se escutava muito a história, de criança, quando gerava mentira ou fantasia. Isso se alinhou ao cordel. É típico em transformar tudo em uma coisa sobrenatural e que repercute. A persistência do mito é vital.
Você tem uma trajetória que tangencia a do Vladimir Carvalho, não?
Já fiz cartazes de filmes do Vladimir Carvalho. Nunca fizemos nada juntos, mas ele é muito meu amigo. Para a dona Lucília Garcez (falecida esposa de Vladimir), fiz ilustrações de oito livros. Numa, com a história do Luiz Gonzaga. Do Vladimir, fiz o cartaz de Conterrâneos velhos de guerra, não sei se ele usou, mas eu tenho os cartazes impressos. Fiz outro da história de um velho comunista que ele tratou em filme, o Luiz Perseghini. Sou pernambucano, e tenho maior orgulho de ter nascido lá e de ter morado na Paraíba (terra de Carvalho). Sou nordestino, não sou bairrista. Há sete livros que ilustrei, com temas universais e cordel. Tem peças de Shakespeare, versão de Alice nos País das Maravilhas (com tradução da Ana Maria Machado), um Pinóquio com versão do pernambucano cordelista. Manoel Monteiro. Ilustrei livro sobre uma fantasia em torno do Dom Quixote, com escritos do J. Borges. O importante é que eu insiro nesses trabalhos uma uma visão gráfica nordestina baseada em gravuras e nas capas de cordel.
Qual sua relação com Brasília, sendo um cidadão honorário?
Conheci Brasília, antes de 1960. Meu pai foi candango de última hora, veio trabalhar no comércio. Viemos quando Brasília estava se estruturando, ainda antes da inauguração. Depois, eu vinha para visitas: passava as férias aqui com os meus pais em Taguatinga. Ao terminar, curso, em 1975, voltei da Hungria, morei aqui por não ter onde ficar. Vim morar com meus pais, e fiquei até agora. Não há dúvida de que sou apaixonado por Brasília. Lembro da primeira vez que eu vim aqui, fui chegando no Gama e vendo apenas um apanhado de casas de edifícios bem pequenininhos e branquinhos, no meio do nada. Me pareceu uma nave espacial. Eu vi a cidade crescer — quando eu vim pra cá, só tinha um semáforo em Brasília e era na Rodoviária. Imagina!? Como é que era isso?! 15 anos, depois da inauguração. Fui organizador da primeira revista em quadrinhos de Brasília, a revista Risco, que tinha um super-herói sendo conduzido por um cangaceiro e foi lançada em 1976.
Você tem uma ligação afetiva com selos postais. Como é isso?
Quando eu estava fora, o único meio de comunicação de que dispunha era o das cartas e que dependem dos selos. A ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos) tinha sido criada um ano da minha viagem. Como desenhista, falei que, quando voltasse, tentaria desenhar selos. Fiz uns esboços, fictícios, e esses selos me deram a possibilidade de fazer trabalhos avulsos para os Correios. De selos postais, fiz 59. Tive a satisfação de receber quatro vezes a medalha Olho de Boi e, por duas vezes, pelos Correios, conquistei o Asiago da Arte Filatélica (Itália). Isso têm registro no Museu Nacional dos Correios. O Olho de Boi é uma medalha do melhor selo do ano. Consegui com os selos o interessante feito de divulgar o meu nome do desenho que circulou em milhões de exemplares. Isso para quem trabalha com ilustração é vitrine. O nome se estabelece: fiz mais de 70 livros infantis e muitos cartazes para o movimento de teatro da cidade. Tenho forte vínculo com o teatro, em especial, o Mamulengo sem Fronteira, grupo de Taguatinga do Walter Cedro.
Seu universo gráfico é todo colorido?
É tudo feito a mão. Não faço nada no computador: a tinta é aquarela, nanquim ou a acrílica preta. Eu me ocupei de temas que renderam prêmios por explorarem a beleza; depois da cultura popular, o que pode concorrer, em beleza, está na esfera da natureza. Sempre uso as cores — o meu trabalho é divulgar e valorizar a cultura popular. Busco afirmação da defesa de algo que está sempre perecível, sempre sendo atacada pela cultura que vem fora, do filão de massa. Se mandar uma criança desenhar alguma coisa hoje, ela recorre ao estilo japonês. Não traz o que minha geração, a do Ziraldo e do Maurício de Sousa, que são meus amigos, conheceram. Com o Ziraldo, aliás, tive a criação de projeto do qual tenho 40 páginas. Seria um Grande sertão, veredas, sob a orientação dele. Mas, por um problema, perdemos a oportunidade de levar o trabalho para frente.
Como você lida com implementos tecnológicos?
Acho que a internet tem um lado maravilhoso, por exemplo. O problema é o vício: você se viciar, não souber mais ler, utilizar. É como a inteligência artificial. As pessoas acham que ela vai dominar o mundo, mas isso é bobagem. Claro que vai tomar muitos empregos, e conseguirá fazer isso. Mas, com a inteligência artificial se passa algo parecido: ela trabalha com coisas do passado, e não consegue responder perguntas como de onde viemos e para onde vamos. Ela não tem filosofia, nem sentimentos — será muito importante para ajudar em muitas áreas, mas em outras, não. Vai ser um instrumento revolucionário. Muita gente vai perder emprego, e isso sempre aconteceu na história da humanidade. Quando começou a revolução industrial, os trabalhadores se reuniram para quebrar as máquinas. Isso foi incrível e é real.
Você tem o que de projeto futuro?
Tenho muitos projetos na gaveta. Hoje mesmo, daqui a pouco, levarei aos Correios, as as ilustrações feitas para Vidas secas, publicação especial a ser lançada pela editora Estrela Cultural, a mesma empresa que faz brinquedos. Já fiz outros trabalhos com eles. A obra é toda trabalhada em cordel. A versão de texto (da obra de Graciliano Ramos) é de Stélio Torquato Lima, com quem já tive sucessos anteriores.
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